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O avanço da medicina canabinoide na proteção a recém-nascidos em risco de crises epilépticas

As fronteiras terapêuticas do conhecimento direcionadas ao uso dos produtos e medicamentos à base de Cannabis estão se expandindo. Estamos assistindo, cada vez mais, a aplicação de Cannabis medicinal nas mais diversas doenças, em diferentes condições clínicas, em diferentes idades. Esse alcance, no entanto, não é aleatório e irresponsável, mas conta com o conhecimento científico e o racional da ciência que são, em qualquer especialidade médica, o arsenal para a correta tomada de decisões.

Recentemente, foi noticiado em todo o mundo que um bebê no Reino Unido foi o primeiro a receber Cannabis medicinal para controlar convulsões. Ele nasceu com encefalopatia hipóxico-isquêmica neonatal (HIE – hypoxic-ischemic encephalopathy em inglês ou SHI – síndrome hipóxico-isquêmica em português) e hoje está com 12 semanas de vida.

Vamos juntos entender o que é a doença, o que ela afeta, seu tratamento convencional, a condição do bebê britânico e de mais alguns outros que foram eleitos para um tratamento inédito com Cannabis medicinal a fim de prevenir convulsões em portadores de SHI e, enfim, a grande importância desse acontecimento.

O que é SHI – síndrome hipóxico-isquêmica

A oferta adequada de oxigênio aos tecidos – chamada de perfusão tecidual – é fundamental para que as células mantenham as suas funções vitais. Quando essa perfusão é insuficiente, há uma mudança do metabolismo celular com consequentes disfunções orgânicas. A síndrome hipóxico-isquêmica (SHI) se desenvolve quando há hipoperfusão tecidual significativa e diminuição da oferta de oxigênio decorrentes das mais diversas causas.

Mais frequentemente, a SHI no período neonatal é causada pela asfixia perinatal, que pode ser devido à interrupção do fluxo sanguíneo umbilical, insuficiente troca de gases pela placenta, perfusão placentária inadequada do lado materno, feto comprometido que não tolera o estresse do trabalho de parto, falha no trabalho pulmonar logo após o nascimento1,2.

Incidência da doença

De acordo com a Florida Neonatal Neurologic Network, a SHI afeta 20 em cada 1.000 nascimentos a termo. A taxa de incidência em bebês prematuros é de 60% de todos os nascidos vivos2.

Danos gerais e cerebrais da SHI

A SHI resulta em danos cerebrais cuja gravidade está dependente de intervenção médica imediata1,2,3,4.

As alterações fisiopatológicas decorrentes da SHI ocorrem do ponto de vista sistêmico e celular. Embora o processo de asfixia leve a uma redistribuição do fluxo sanguíneo com o objetivo de preservar a perfusão do Sistema Nervoso Central (SNC), do coração e outros órgãos, os tecidos periféricos, as vísceras abdominais e os pulmões se tornam hipoperfundidos, em detrimento dos órgãos mais nobres citados anteriormente. Essa é a forma que o organismo encontra para preservar a função dos órgãos considerados mais nobres.

Entretanto, quando o processo hipóxico-isquêmico se torna muito intenso e extremamente grave, o SNC, em especial, é acometido surgindo manifestações decorrentes de suas disfunções. E algumas delas são a neuroinflamação, processos oxidativos, liberação intensa do neurotransmissor glutamato e aumento de íons cálcio dentro das células nervosas, esses últimos provocando convulsões frequentes. A partir daí, irão ocorrendo vários danos celulares, vindo daí o termo encefalopatia. É muito importante evitar que as crises convulsivas ocorram, pois estão associadas à epilepsia e podem causar atraso no desenvolvimento do sistema nervoso e prejudicar a qualidade de vida da criança. Em casos raros, convulsões demasiadamente prolongadas podem ser fatais3,4.

O quadro clínico agrava-se durante os primeiros três dias de vida e o óbito é comum entre 24 e 72 horas de vida1,2.

Efeitos da SHI e tratamentos

As condições da doença variam dependendo de o bebê apresentar sintomas leves, moderados ou graves. Existem vários tipos diferentes de tratamento, alguns que tratam apenas os sintomas de emergência, mas existem outros que tentam reverter ou diminuir os danos cerebrais.

Algumas opções de tratamento incluem: ventilação mecânica para ajudar um bebê que não consegue respirar sem assistência, resfriar o cérebro ou o corpo para reverter a hipóxia cerebral causada por altas temperaturas, tratamento com oxigênio hiperbárico, anestesia geral e medicamentos para controlar convulsões, além de tratamentos para ajudar a função cardíaca do bebê e a controlar a pressão arterial do mesmo1,2,3,4.

O caso do recém-nascido britânico e a esperança no tratamento

O garoto britânico nasceu por meio de uma cesariana de emergência, quando já havia três dias de atraso do nascimento. Pesava apenas 1 kg e apresentou condições sofríveis, sendo confirmada a SHI. Foi submetido ao tratamento por resfriamento por 72 horas, tendo recebido também uma dose intravenosa única de 0,1 miligrama por quilograma de peso de um medicamento derivado de Cannabis. Permaneceu em monitoramento, desde então.

Os pesquisadores destacaram que o medicamento de Cannabis medicinal rico em canabidiol (CBD) utilizado no estudo é seguro quanto a sua origem e formulação, possuindo quantidades mínimas de THC (tetraidrocanabinol). O tratamento proposto é bem tolerado e promissor – em crianças mais velhas, têm demonstrado a habilidade de reduzir ou até mesmo eliminar completamente as convulsões5-10.

A grande novidade trazida por essa notícia é o fato de que é a primeira vez que o medicamento é usado para tentar prevenir convulsões e proteger o cérebro em um ser humano recém-nascido com SHI, o que serviu para iniciar um estudo clínico com outros bebês na mesma condição. Vale lembrar que o entendimento e a aprovação da família são fundamentais para a realização da pesquisa.

O estudo considera dois grupos: o de tratamento com o composto de Cannabis medicinal comparado com o grupo placebo, acompanhado de outros tratamentos. A intenção dos pesquisadores é verificar se o medicamento com canabidiol é seguro e eficaz para diminuir o grau de lesão cerebral em recém-nascidos humanos com SHI. Já são conhecidos os efeitos neuroprotetores do produto de Cannabis medicinal em pesquisas in vitro e em animais nas condições de lesões hipóxicas-isquêmicas6-8.

Atualmente, os produtos de Cannabis medicinal já são usados para tratar crianças com formas raras de epilepsia9,10. Os pesquisadores do estudo, apoiados pelo Guy’s and St Thomas’ NHS Foundation Trust, em Londres, esperam que o medicamento possa um dia ser usado rotineiramente nos cuidados neonatais para ajudar bebês em risco de convulsões e lesões cerebrais.

Vamos acompanhar esse estudo britânico e aguardar ansiosos os resultados. Manteremos você informado!

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O poder do paciente como sujeito ativo em seu tratamento com Cannabis medicinal

Materiais consultados:

  1. Procianoy RS & Silveira RC. J Pediatr (Rio J) 2001; 77 (Supl.1):S63-S70:
  2. Douglas-Escobar M, Weiss MD. Hypoxic-ischemic encephalopathy: a review for the clinician. JAMA Pediatr. 2015;169(4):397-403. doi:10.1001/jamapediatrics.2014.3269
  3. Cunha, Cláudia & Viana, Leandra & Souza, Cristiane & Mangueira, Melissa & Lima, Francisca. (2018). Hipotermia terapêutica em recém-nascidos com encefalopatia hipóxico-isquêmica: Revisão Integrativa. Revista da Sociedade Brasileira de Enfermeiros Pediatras. 18. 37-42. 10.31508/1676-3793201800006.
  4. Wassink G, Davidson JO, Dhillon SK, et al. Therapeutic Hypothermia in Neonatal Hypoxic-Ischemic Encephalopathy. Curr Neurol Neurosci Rep. 2019;19(2):2. Published 2019 Jan 14. doi:10.1007/s11910-019-0916-0
  5. Mohammed N, Ceprian M, Jimenez L, Pazos MR, Martínez-Orgado J. Neuroprotective Effects of Cannabidiol in Hypoxic Ischemic Insult. The Therapeutic Window in Newborn Mice. CNS Neurol Disord Drug Targets. 2017;16(1):102-108. doi:10.2174/1871527315666160927110305
  6. Castillo A, Tolón MR, Fernández-Ruiz J, Romero J, Martinez-Orgado J. The neuroprotective effect of cannabidiol in an in vitro model of newborn hypoxic-ischemic brain damage in mice is mediated by CB(2) and adenosine receptors. Neurobiol Dis. 2010;37(2):434-440.
  7. Pazos MR, Mohammed N, Lafuente H, et al. Mechanisms of cannabidiol neuroprotection in hypoxic-ischemic newborn pigs: role of 5HT(1A) and CB2 receptors. Neuropharmacology. 2013;71:282-291. doi:10.1016/j.neuropharm.2013.03.027
  8. Lafuente H, Alvarez FJ, Pazos MR, et al. Cannabidiol reduces brain damage and improves functional recovery after acute hypoxia-ischemia in newborn pigs. Pediatr Res. 2011;70(3):272-277. doi:10.1203/PDR.0b013e3182276b11
  9. Blair, R.E., Deshpande, L.S., and DeLorenzo, R.J. (2015, September). Cannabinoids: is there a potential treatment role in epilepsy? Expert Opinion on Pharmacology, 16(13), 1911-4.https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4845642/.
  10. Devinsky, O., Cilio, M.R., Cross, H., Fernandez-Ruiz, J., French, J., Hill, C., Katz, R., Di Marzo, V., Jutras-Aswad, D., Notcutt, W.G., Martinez-Orgado, J., Robson, P.J., Rohrback, B.G., Thiele, E., Whalley, B., and Friedman, D. (2014, June). Cannabidiol: pharmacology and potential therapeutic role in epilepsy and other neuropsychiatric disorders. Epilepsia, 55(6), 791-802.
    https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4707667/.

 

Escrito por Dra. Adriana Grosso

Medical Science Liaison, MSL, na HempMeds Brasil.