Seria possível utilizar um determinado extrato de Cannabis sativa como uma estratégia de prevenção contra a infecção do coronavírus, reduzindo a mortalidade e a taxa de dispersão da doença? Antes de você responder ao questionamento com a palavra “impossível!”, atente para o lançamento, nas últimas semanas, de resultados preliminares de uma pesquisa realizada na Universidade de Lethbridge (Canadá)1 com canabidiol (CBD).
Como a pesquisa foi pensada
Segundo os autores, o SARS-CoV2 foi isolado pela primeira vez a partir de células epiteliais das vias aéreas humanas e mostrou-se semelhante ao coronavírus de uma outra doença, a síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV). Por isso, foi denominado SARS-CoV2.
Sabe-se, há certo tempo, que a enzima conversora de angiotensina II (ECA2) é a “fechadura” utilizada pelo SARS-CoV2 e a principal via de entrada do vírus – a “chave” – no hospedeiro humano2. Como a ECA2 desempenha um papel central na entrada celular, as células que expressam ECA2 servem como portais virais críticos. Se vírus e ECA2 se ligam3, um processo inflamatório começa a se formar e a gerar os sinais e sintomas conhecidos e tão divulgados da doença: sintomas gripais (febre, fadiga, mialgia e dor de cabeça), tosse seca e dispneia, sintomas gastrointestinais (como diarreia e náusea), além de anosmia (perda do sentido do olfato) e ageusia (perda do sentido do paladar).
Um estudo recente4 relatou altos níveis de expressão de ECA2 no epitélio oral e sugeriu que a cavidade oral poderia ser considerada um alvo de suscetibilidade infecciosa de alto risco para SARS-CoV2 e, portanto, um alvo importante para estratégias de prevenção. O que explica a necessidade do uso de proteção por máscaras isolando nariz e boca. Fumantes e pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) foram associados a maior predisposição a COVID-19 e doenças mais graves por expressarem grandes quantidades de ECA2 em suas células pulmonares.
De posse dessas informações, parece plausível que a modulação dos níveis de ECA2 nos tecidos pode, portanto, ser uma estratégia para diminuir a suscetibilidade para a COVID-19.
Uma determinada linhagem de Cannabis sativa6,7 contendo altas concentrações de um de seus compostos, o canabidiol (CBD), com propriedades anti-inflamatórias, foi pensado como uma possível alternativa terapêutica. Sob licença de pesquisa do Health Canada, os pesquisadores desenvolveram mais de 800 novas linhagens e isolaram extratos de Cannabis sativa, apostando na hipótese de que extratos com alto teor de CBD pudessem ser usados para modificar a expressão de ECA2 em tecidos-alvo do COVID-19.
Como a pesquisa foi feita
Amostras de células da parte interna da boca, das vias aéreas e do intestino inflamadas foram tratadas com nove diferentes extratos líquidos de Cannabis sativa (preparados a partir de amostras das flores das plantas). Cada extrato tinha diferentes quantidades de CBD e THC (Tetrahidrocanabinol), os dois tipos mais frequentes de canabinoides. As células usadas foram de um modelo de tecido humano 3D artificial. Após o tempo de tratamento, as células foram analisadas para ver se a inflamação e a ACE II tinham diminuído após o tratamento.
A quais resultados e conclusões os autores chegaram
Alguns extratos de Cannabis sativa, especialmente com altas doses de CBD, quando usados para tratar inflamação de células da cavidade oral, da cavidade nasal e intestinos, parecem cumprir o seu propósito anti-inflamatório. Tal efeito foi comprovado pelo nível reduzido de ECA2 e de inflamação nas amostras de tecido após o tratamento1.
Pensando na teoria inicial de que a ECA2 seria a “fechadura” para dar acesso ao vírus à célula hospedeira dando início ao processo inflamatório, ao reduzir o número de proteínas ECA2, era de se esperar que o processo inflamatório se tornasse limitado. Os autores chegaram na informação de base para uma análise mais aprofundada dos efeitos de Cannabis sativa no desenvolvimento do COVID-19, bem como em outras doenças virais em quais vírus usam o receptor ECA2 como uma porta de entrada molecular.
Os autores também destacaram que nos extratos de Cannabis pode haver mais de 100 tipos de fitocanabinoides, além de CBD e THC, e terpenos que podem atuar sinergicamente com efeitos terapêuticos.
A forma de utilização dos fitocanabinóides é, com certeza, um ponto importante. Nessa pesquisa, o extrato foi adicionado ao meio em que as células inflamadas estavam. Fica o alerta de que os efeitos do consumo de Cannabis fumada nos níveis de expressão da ECA2 devem ser cuidadosamente investigados.
Apesar de apresentar limitações importantes, o estudo foi crucial para a futura análise dos efeitos da Cannabis medicinal no COVID-19. A partir desse estudo, outros com certeza virão na tentativa de buscar uma relação entre SARS-CoV2 e Cannabis sativa, o que pode ser plausível se provado dentro dos rígidos preceitos da ciência. O importante agora é os pesquisadores seguirem no sentido de, pelo menos, provocar uma infecção viral pelo SARS-CoV2 in vitro e testar extratos de Cannabis especificamente contra ele.
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Escrito por Dra. Adriana Grosso
Medical Science Liaison, MSL, na HempMeds Brasil.
Referências:
- Bo Wang, Anna Kovalchuk, Dongping Li, Yaroslav Ilnytskyy, Igor Kovalchuk and Olga Kovalchuk. Novel Anti- Inflammatory High-CBD Cannabis Sativa Extracts Modulate ACE2 Expression in COVID-19 Gateway Tissues Preprints (www.preprints.org) | NOT PEER-REVIEWED | Posted: 19 April 2020 doi : 10.20944/preprints202004.0315.v1
- Busse, L.W., Chow, J.H., McCurdy, M.T. et al. COVID-19 and the RAAS—a potential role for angiotensin II?. Crit Care 24, 136 (2020). https://doi.org/10.1186/s13054-020-02862-1
- Turner AJ, Hiscox JA, Hooper NM. ACE2: from vasopeptidase to SARS virus receptor. Trends Pharmacol Sci 2004; 25(6): 291-4.
- Xu H, Zhong L, Deng J, et al. High expression of ACE2 receptor of 2019-nCoV on the epithelial cells of oral mucosa. Int J Oral Sci 2020; 12(1): 8.
- https://www.usatoday.com/in-depth/news/2020/04/15/coronavirus-risk-90-patients-had-underlying-conditions/2962721001/
- Kovalchuk O, Kovalchuk, I. Cannabinoids as anticancer therapeutic agents. Cell Cycle
- Fitzcharles MA, Clauw DJ, Hauser W. A cautious hope for cannabidiol (CBD) in rheumatology care. Arthritis Care Res (Hoboken)