Um importante passo na descoberta de como o CBD age nas síndromes epilépticas refratárias
28 de agosto de 2020 | publicado em
Para quem está na área de saúde, tão importante quanto saber se um medicamento alivia ou acaba com os sintomas de uma doença é entender como ele funciona. É por meio da descoberta de mecanismos de ação, ou seja, por quais caminhos a substância vai atuar dentro das células, que permite aos cientistas avaliar a possibilidade de otimização dos usos e o desenvolvimento de outros medicamentos com efeitos semelhantes.
Pensando assim é que o Laboratório de Neurofarmacologia do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais deu um passo importante rumo a esse conhecimento focando no modo de ação do canabidiol (CBD) ao reduzir a frequência das chamadas síndromes epilépticas refratárias, que resistem aos medicamentos convencionais. Saiba mais sobre o estudo, epilepsia e CBD a seguir:
O que é epilepsia?
Segundo citaram os autores, a epilepsia é um distúrbio neurológico caracterizado por convulsões recorrentes e as consequências neurobiológicas, cognitivas e sociais associadas a esta condição. As crises epilépticas ocorrem de forma recorrente e espontânea, caracterizadas por uma descarga hipersincronizada de populações de neurônios do sistema nervoso central (SNC) devido ao aumento da excitabilidade. Após as convulsões, processos patológicos podem contribuir para a epileptogênese.
A epilepsia do lobo temporal é o tipo mais comum de epilepsia na população adulta, representando cerca de 40% de todos os casos. Há um desequilíbrio na sinalização de importantes neurotransmissores como o glutamato e/ou GABA. Isso leva a uma excessiva liberação de glutamato na fenda sináptica e excitotoxicidade, acompanhada de gliose (alteração da substância branca cerebral), que leva à esclerose hipocampal (inflamação com enrijecimento local). Essas mudanças também podem afetar estruturas adjacentes ao hipocampo.
O que é CBD?
O CBD é uma das substâncias encontradas na planta Cannabis sativa que não produz o efeito psicotomimético (alucinógeno), como ocorre com o THC (tetraidrocanabinol). O CBD é o principal composto nos extratos vegetais ou produtos de Cannabis utilizados na medicina canabinoide aqui no Brasil desde 2014. Mas os mecanismos de ação pelos quais os canabinoides atuam ainda não foram completamente elucidados.
O CBD na epilepsia
O artigo “Cannabidiol anticonvulsant effect is mediated by the PI3Kγ pathway”, ao meu ver tem dois grandes méritos: primeiro, foi produzido a partir de pesquisa brasileira, sendo publicado na importante revista científica Neuropharmacology. E segundo, mostrou, em modelo animal, que seu efeito anticonvulsivante e neuroprotetor é mediado pelas proteínas fosfatidilinositol 3-quinases (PI3K), alvo mecanístico da rapamicina (mTOR).
Quando uma substância se dirige às células do corpo, a mesma tem que ser reconhecida como tal por proteínas que permanecem nas membranas celulares ou que estão dentro da célula, os chamados receptores celulares. Esse reconhecimento químico aciona mecanismos em cascata dentro da célula que culminam em respostas fisiológicas constatadas pelo organismo todo. Dessa forma, uma via de sinalização nada mais é que uma espécie de canal de comunicação por meio da qual a substância comandaria as ações celulares que poderiam ser crescimento, proliferação, síntese proteica, sobrevivência e desenvolvimento das células.
Nessa pesquisa, a hipótese a ser provada era a de que a ativação do mecanismo em cascata PI3K/mTOR pelo CBD e receptor canabinoide CB1 evitaria o excesso de atividade de neurônios, impedindo convulsões graves e reduzindo as inflamações e danos neuronais.
Como a pesquisa foi realizada
Para os experimentos, a equipe utilizou animais (testes in vivo) e cultura de células neuronais de hipocampo (testes in vitro).
Convulsões comportamentais foram induzidas por microinjeção de pilocarpina intra-hipocampal bilateral nos animais para simular uma crise comportamental. Vinte e quatro horas depois da primeira crise, os animais foram perfundidos e seus cérebros removidos e processados por análise histológica de neurodegeneração, microgliose e astrocitose. Culturas primárias de neurônios do hipocampo foram usadas para o ensaio de morte celular induzida por glutamato.
O CBD aumentou a latência e reduziu a gravidade das convulsões comportamentais induzidas pela pilocarpina, bem como preveniu alterações pós-ictais, como neurodegeneração, microgliose e astrocitose em animais. Os efeitos in vivo do CBD foram abolidos pela ação farmacológica inibitória do receptor canabinoide ou mTOR. In vitro, a inibição ou deficiência de PI3Kγ também alterou a proteção do CBD observado no ensaio de morte celular induzida pelo glutamato. Assim, os autores sugeriram que a modulação da via de sinalização PI3K/mTOR está envolvida nos efeitos anticonvulsivantes e neuroprotetores de CBD.
Um outro fato interessante e inesperado observado nessa pesquisa e que chamou a atenção dos pesquisadores ocorreu após a inibição da via PI3K/mTOR. O poder anticonvulsivo do ácido valpróico (um medicamento convencional utilizado no tratamento da epilepsia) manteve-se, reforçando as informações sobre o mecanismo de ação do CBD.
Esses achados são importantes não apenas para a elucidação dos mecanismos de ação do CBD, que precisam ser melhor compreendidos, mas também para permitir a previsão de tratamentos e efeitos colaterais, garantindo eficácia e segurança no tratamento de pacientes com epilepsia.
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Escrito por Dra. Adriana Grosso
Medical Science Liaison, MSL, na HempMeds Brasil.