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Os Desafios de Estudar Cannabis: Dificuldades e Possibilidades na Trajetória Científica

O ano era 2010 e eu tinha sido aprovada para fazer o Doutorado em ciências biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto era investigar o papel dos canabinoides sobre a circuitaria do sistema endocanabinoide na fisiologia renal e eu estava super animada para iniciar o meu estudo.

Mas, logo no início de tudo, junto com a animação veio também a frustação, uma vez que nos primeiros meses eu descobri que a Cannabis sativa, assim como qualquer molécula dela extraída, ainda contavam na lista F de substâncias controladas pela portaria 344 do ministério da saúde e isso era um problema. Isso significava que este material era descrito como substâncias de uso proscrito no brasil, ou seja, a livre compra e uso dessas substâncias para pesquisa era totalmente proibida.

Para tal tinha uma saída: entrar em contato com a ANVISA e apresentar muitos documentos, que justificassem a entrada dessas substâncias no Brasil. Após isso, eu deveria encontrar um fornecedor legal dessas substâncias e encontrar uma importadora que também estivesse com a documentação especial totalmente consoante com a exigências do órgão regulador, pagar algumas centenas de dólares e tudo se resolveria. Depois de um bom tempo tentando, desisti de usar moléculas extraídas da planta cannabis, e passei a usar moléculas sintéticas desenvolvidas para uso exclusivo em laboratório, impróprias para consumo humano, mas com propriedades canabinomiméticas (atividade que qualquer molécula tem ao se ligar aos receptores canabinoides) e que tinham permissão para entrarem no Brasil sem configurar tráfico de drogas.

Em 2014 eu conclui meu doutorado e voltei a pensar na possibilidade de, enfim, trabalhar com algumas moléculas derivadas da Cannabis. Os tempos eram outros e consegui a importação do canabidiol (CBD), mas mesmo assim não foi nada fácil e o caminho só pôde ser percorrido, pois o CBD estava “na moda”. Contei com a ajuda de pesquisadores de outras instituições, mas importar o THC ainda era impraticável, mesmo em 2014.

Mais alguns anos se passaram e atualmente a ANVISA ainda apresenta regras bem rígidas quanto a importação desse tipo de material para ser aplicado em pesquisa. Muita coisa melhorou, pois agora os cientistas precisam responder menos detalhes e apresentar uma quantidade menor de documentos, que estão contidos da RDC 367. Mesmo assim, ainda consiste em um grau elevado de burocracia para se ter acesso a essas substâncias que a cada ano são ainda mais aplicáveis na medicina em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Esse relato pessoal poderia ser aplicado para qualquer outro cientista da área de ciência canabinoide. As barreiras para o estudo dessas substâncias sempre foram pedras no sapato dos pesquisadores, e certamente impediram o andamento de muitas formas de saberes associados a tecnologia em torno da Cannabis. O próprio Professor Dr Elisardo Carlini, foi muito perseguido por aplicar a Cannabis e fitocanabinoides em seus estudos, tendo que muitas vezes fazer isso de modo escondido, correndo o risco de ser acusado por porte e tráfico de drogas.

Mas o fato é que, mesmo com tantas barreiras, a pesquisa brasileira sempre foi galgando um lugar de destaque dentro da ciência canabinoide, possuímos trabalhos que são verdadeiros marcos científicos dentro do tema, e somos citados por tantos outros cientistas importantes em todo o mundo. Me pergunto em qual degrau de máximo destaque estaria a ciência brasileira, se as barreiras para o estudo da cannabis não fosse tão altas.

Barreiras essas que foram criadas por conta do Tratado Internacional de Drogas (Convenção das Nações Unidas sobre o controle de drogas), um documento criado em 1961, reformulado em 1972 e que permanece até os dias atuais sendo um documento válido. De fato, esses tratados e convenções internacionais não proibiam o uso das substâncias ali controladas para uso médico ou para pesquisa, ficando isso sendo uma decisão individual de cada país signatário, mas o Brasil sempre optou por tornar esse acesso o mais dificultoso o possível. E nessa linha de visão, perdem os pacientes e os cientistas.

Contudo, estamos em 2021, e como havia sido comentado, alguns aspectos se tornaram menos dificultosos e a aplicabilidade desses compostos na ciência tem se tornado mais frequente, e percebo isso a cada congresso científico que participo e ano a ano vejo o número de trabalhos com canabinoides aumentando. Mas estamos longe de ter um acesso simples e menos burocrático como acontece em alguns países, como Israel, que tem se tornado verdadeiros especialistas em ciência e medicina canabinoide. É verdadeiramente uma grande perda, pois temos excelentes cientistas das mais diferentes áreas da ciência e tecnologia que são capazes de fazerem trabalhos magníficos no campo da medicina, agronomia, genética e muitas outras, colocando o Brasil sob os holofotes em termos de medicina canabinoide.

Mas tão importante quanto as possíveis atualizações a nível da ANVISA e político, devemos também voltar nossos olhos para possíveis parcerias que possam acontecer nesse setor. Nesse âmbito, as empresas farmacêuticas do ramo da medicina canabinoide, podem e devem desempenhar um importante papel, fomentando e dando acesso aos pesquisadores para que seus produtos sejam utilizados em colaborações abordando a pesquisa científica dos mais variados degraus. Em outros setores da indústria farmacêutica essa ligação entre pesquisa e produto é muito bem estabelecida, e fonte de muito desenvolvimento farmacêutico, portanto não existem motivos para no ramo da indústria de cannabis medicinal esse caminho seja diferente. Afinal de contas, esse é o tipo de colaboração onde ambos os lados ganham, e mais do que isso, a sociedade ganha, pois terá acesso não apenas a um produto de qualidade em grau farmacêutico, mas também acesso ao conhecimento.

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Escrito por Luzia Sampaio – MSL da HempMeds Brasil.