De maneira geral, o quê é câncer?
Câncer é um termo genérico utilizado para classificar um grupo de doenças relacionadas que atuam em conjunto, cuja principal característica é o crescimento desenfreado de células. Nosso corpo conta com trilhões de células que passam, constantemente, por um processo de “reciclagem”: as células mais antigas ou danificadas morrem ou são destruídas para dar lugar às mais novas e sadias. Estes processos de morte e divisão celular são estritamente controlados e essenciais para a manutenção de um ambiente interno saudável, mantendo o bom funcionamento de todo o sistema. No entanto, por alguma disfunção, células danificadas ou com mutações podem acabar evadindo os mecanismos naturais de morte celular, permanecendo vivas quando deveriam ser recicladas, ao passo que novas células vão sendo formadas, mesmo sem necessidade, e o dano/mutação vai se perpetuando. Este crescimento desenfreado gera um acúmulo de células no local de origem, formando uma massa sólida que recebe o nome de tumor. Caso essa massa tumoral cresça o suficiente a ponto de invadir tecidos adjacentes, ou se desprender e viajar pelo corpo até outros órgãos, passa a ser considerado um tumor maligno. Sugerimos a leitura dos artigos de revisão de Hanahan e Weinberg (2000 e 2011) referenciados no fim do texto para compreender melhor as características principais da doença.
A raiz da doença é genética, causada a partir de mutações e instabilidades genômicas pontuais ou acumuladas. Podem ser hereditárias ou adquiridas por meio de sucessões de erros genéticos ou danos ao DNA causados por alguma exposição externa a substâncias cancerígenas, como radiações, raios ultravioletas do sol ou, ainda, comportamentos de risco, como tabagismo, sedentarismo e má alimentação. Existem mais de 100 tipos de câncer, e suas denominações mais comuns são referências ao órgão afetado, embora o conhecimento mais profundo dos mecanismos moleculares já nos permita identificar algumas mutações específicas que ocorrem em vários tipos diferentes de tumores e são úteis para guiar um tratamento mais específico para cada caso. Também podem ser denominados de acordo com o tipo de célula que o originou, como epitelial ou mesenquimal.
A doença é dividida em vários estágios de evolução, e cada estágio pode requerer um tratamento distinto, que varia, geralmente, entre remoção mecânica da massa tumoral (intervenção cirúrgica), uso de radiação ou de medicamentos para destruir as células tumorais (radio e quimioterapia), estimulação do sistema imunológico do paciente para que o próprio organismo combata o tumor (imunoterapia) ou ainda manipulação de níveis hormonais para controlar tumores que tenham forte relação com alguns hormônios (terapia hormonal).
O câncer de mama
O câncer de mama é o tipo mais diagnosticado em mulheres no mundo todo. Recebe este nome pois as células tumorais têm origem nos tecidos mamários, podendo ser identificadas através de exames como ultrassom, biópsia, mamografia e o próprio autoexame de mama em busca de caroços ou mudanças repentinas nos seios. Assim como os demais tipos, sua detecção precoce é fundamental para que se aumentem as chances de sucesso do tratamento.
Cerca de 5 a 10% dos tumores de mama são relacionados a fatores hereditários, e algumas mutações já foram identificadas como fatores de risco, como as observadas nos genes BRCA1 ou BRCA2, fazendo com que seus portadores tenham uma chance maior de desenvolvimento de câncer de mama e ovário. Testes genéticos, que vem se tornando cada vez mais baratos e populares, permitem identificar se o indivíduo possui determinada mutação, podendo auxiliar na predição de uma maior propensão ao aparecimento de alguns tipos de câncer e outras doenças, e é mais comumente realizado em pessoas que estejam em um grupo de maior risco devido à incidência da doença na família.
Uma vez identificado o tumor, procede-se com uma avaliação mais minuciosa de seu tipo específico para auxiliar na escolha da melhor forma de tratamento. Estes testes incluem a avaliação de níveis hormonais como estrogênio e progesterona, fatores de crescimento, capacidade de invasão e testes genéticos, permitindo que o profissional recomende um tratamento especializado e direcionado àquele paciente. No câncer de mama, os estágios da doença são baseados no tamanho e na localização do tumor primário, na propagação das células malignas para nodos linfáticos adjacentes ou outras partes do corpo, no grau do tumor e na presença de biomarcadores específicos. Pacientes deste tipo de câncer submetidos à intervenção cirúrgica geralmente fazem a retirada completa do tecido mamário, podendo proceder com uma cirurgia de reconstrução de mama após o procedimento inicial.
Uso dos canabinoides no câncer em geral
Quando o assunto é o uso de Cannabis medicinal no tratamento de câncer de qualquer origem, geralmente a primeira coisa que vem à mente é o cuidado paliativo, uma abordagem que visa a melhoria da qualidade de vida de um paciente, sem necessariamente buscar pela cura da doença que o acomete. Um paciente em tratamento oncológico quimioterápico sofre diversos efeitos colaterais. Isso ocorre por se tratar de uma terapia muito agressiva, que ataca células que estão em rápida divisão e crescimento. Devido a não especificidade e direcionamento do fármaco para que atinjam apenas células tumorais, os medicamentos utilizados em um coquetel quimioterápico também podem causar danos às células sadias, principalmente as que estão em divisão mais acelerada, por isso é comum que os cabelos e unhas desses pacientes sejam visivelmente afetados. Ainda que existam medicamentos com um certo direcionamento, como os que possuem anticorpos acoplados em sua estrutura para reconhecimento de células específicas, estes também não estão livres de efeitos adversos.
Dentre os efeitos colaterais, destacam-se náuseas intensas, perda de apetite, dores, fadiga, irregularidade do sono, enfraquecimento do sistema imunológico, além dos sintomas causados pela própria doença. Tudo isso deixa o paciente ainda mais debilitado, com menos força para enfrentar o dia-a-dia e a própria doença. Estratégias paliativas podem ser fundamentais no sucesso da terapia oncológica. Nesse sentido, o uso dos canabinoides combate perfeitamente os sintomas descritos, devido aos efeitos esperados de sua atuação, já bem estabelecida, como um poderoso antiemético, estimulante de apetite, analgésico, sedativo e imunomodulador.
Mas uma sólida base de evidência científica vem sendo construída sobre o potencial dos canabinoides para além dos cuidados paliativos, atuando diretamente na origem da doença. Diversos estudos em modelos pré-clínicos têm mostrado resultados interessantes quando se utilizam canabinoides em culturas de células, provocando a morte de células tumorais ainda mantendo intactas as células sadias. Contudo, devemos ter muito cuidado ao fazer afirmações como “canabinoides curam câncer”, pois existe uma distância muito grande entre resultados laboratoriais in vitro e uma eventual cura da doença.
Também encontramos diversos relatos de pessoas que utilizaram produtos à base de Cannabis em seus tratamentos e obtiveram um resultado final positivo. Apesar de também animar os cientistas e entusiastas, muitos desses pacientes acabam passando por mudanças radicais em seus estilos de vida junto à administração dos canabinoides, como nos hábitos alimentares, seja migrando para uma alimentação mais saudável ou dietas mais restritivas, prática de exercícios físicos, abandono de comportamentos de risco, entre outros fatores que também podem contribuir e muito para a evolução do quadro do paciente.
Sabendo do tão conhecido poder do efeito sinérgico de extratos de Cannabis (efeito entourage) e de sua frequente superioridade terapêutica em comparação aos canabinoides isolados em outros modelos, era de se esperar que para o câncer a resposta não seria diferente: estudos demonstraram que os extratos ricos em canabinoides e outros componentes aparentemente configuram uma opção mais vantajosa no tratamento de neoplasias (Blasco-Benito et al., 2018).
Apesar de ser um pouco mais difícil de se avaliar os efeitos diretos de canabinoides em tumores se comparados a um possível controle imediato de tremor ocasionado por Parkinson, por exemplo, ou mesmo uma redução no número de crises convulsivas diárias de um paciente epiléptico, é fato que a medicina canabinoide vem ganhando espaço no tratamento do câncer. Dentre as centenas de resultados promissores, é dever da ciência continuar seu papel investigativo em busca de uma conclusão mais assertiva que poderá oferecer tanto uma melhoria na qualidade de vida do paciente quanto caminhos para uma possível cura de um tumor.
De maneira geral, relatos de caso somados aos diversos tipos de estudos sendo feitos, além do perfil altamente seguro dos derivados de Cannabis, indicam que os canabinoides têm o potencial de se tornarem importantes aliados na terapia antitumoral, não só nos cuidados paliativos, mas também na origem da doença. Ademais, a característica de manutenção da homeostase, ou seja, de manutenção do equilíbrio interno proporcionado pelo sistema endocanabinoide também pode ajudar, por si só, para que o organismo do paciente se reestabeleça e tenha meios para combater ou reparar possíveis danos causados pela doença.
O artigo de revisão de Kisková et al. (2019) traz algumas perspectivas futuras do potencial terapêutico dos canabinoides especificamente em câncer de mama e será mais discutido no nosso próximo post. Acompanhe nosso blog!
Escrito por Gabriel Barbosa – Analista de Desenvolvimento Regulatório e Projetos Científicos HempMeds Brasil.
Referências*
- Blasco-Benito S, Seijo-Vila M, Caro-Villalobos M, et al. Appraising the “entourage effect”: Antitumor action of a pure cannabinoid versus a botanical drug preparation in preclinical models of breast cancer. Biochem Pharmacol. 2018 Nov;157:285-293. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/29940172
- Hanahan D, Weinberg RA. The hallmarks of cancer. Cell. 2000 Jan 7;100(1):57-70. https://www.cell.com/action/showPdf?pii=S0092-8674%2800%2981683-9
- Hanahan D, Weinberg RA. Hallmarks of cancer: the next generation. Cell. 2011 Mar 4;144(5):646-74. https://www.cell.com/action/showPdf?pii=S0092-8674%2811%2900127-9
- Kisková T, Mungenast F, Suváková M, et al. Future Aspects for Cannabinoids in Breast Cancer Therapy. Int J Mol Sci. 2019 Apr 3;20(7):1673. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6479799/