Como a Anvisa avalia a eficácia de um medicamento e o que podemos aprender sobre isso com as vacinas para a Covid-19
9 de fevereiro de 2021 | publicado em
No dia 17 de janeiro de 2021, domingo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso emergencial de lotes específicos de duas vacinas contra a Covid-19: a CoronaVac, da farmacêutica chinesa Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã, e a Covishield, da farmacêutica inglesa AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford e a Fiocruz.
Enquanto as opiniões divididas ganham força pela politização que foi criada sobre o tema, algumas dúvidas ficam no ar, e a questão da eficácia é a mais pontuada. Como se avalia a eficácia de uma vacina? Será que esse processo tem algo a ver com o desenvolvimento de um produto derivado da Cannabis?
Nosso intuito, aqui, é traçar um paralelo entre a avaliação de eficácia das vacinas discutida na reunião da Anvisa com o desenvolvimento de eventuais medicamentos derivados da Cannabis. Vamos mergulhar em algumas questões um pouco mais técnicas.
Quem acompanhou a reunião da Anvisa pôde aprender muito sobre o processo de avaliação da eficácia e da segurança das vacinas. A reunião foi longa, mas muito didática, e envolveu os pareceres, considerações e recomendações de três áreas técnicas da Agência: a Gerência-Geral de Medicamentos e Produtos Biológicos (GGMED), a Coordenação de Inspeção e Fiscalização de Insumos Farmacêuticos (Coins) e a Gerência-Geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária (GGMON).
O desenvolvimento de um candidato ao registro começa com ensaios pré-clínicos, feitos em modelos laboratoriais como células e animais, que avaliam alguns aspectos de segurança. Constatada a segurança mínima, dá-se início ao processo de desenvolvimento da etapa clínica, quando o produto começa a ser testado em seres humanos. Essa próxima etapa é dividida em 4 fases, de I a IV.
A fase I consiste na aplicação do produto em um número pequeno de seres humanos saudáveis, para uma avaliação preliminar de segurança. Se não houver complicações nesses primeiros indivíduos, o produto segue para a fase II. É importante chamar a atenção para uma diferença importante a partir desta fase. No caso das vacinas, como o objetivo primário é fazer com que o vacinado produza anticorpos contra determinado agente infectante de modo que este não venha a desenvolver a infecção caso seja exposto ao agente, os ensaios de fase II e III são feitos em pacientes ainda saudáveis, que serão monitorados caso venham a desenvolver a infecção. No caso de se avaliar, por exemplo, a eficácia do controle de convulsões por um composto derivado da Cannabis, a partir da fase II do desenvolvimento clínico, este produto deverá ser testado em pacientes que já possuem a doença. Tudo depende do objetivo sendo proposto, pois mesmo um medicamento pode ser estudado na prevenção de determinadas doenças e, dessa forma, seguiria o racional mais semelhante ao da vacina.
A fase II consiste na aplicação do produto em um número maior de participantes com o objetivo de expandir análises de segurança, determinar as dosagens alvo e iniciar a avaliação da eficácia deste novo candidato em desenvolvimento. Os resultados darão embasamento para que se siga para uma fase ainda mais robusta e rigorosa para consolidar os dados obtidos.
A fase III é a fase final pré-registro. Um número ainda maior de participantes é recrutado para as conclusões acerca da efetividade comparada desse novo produto; da segurança; e do risco/benefício. É a fase mais longa, cara e importante para a determinação da real eficácia do produto para a condição em que está sendo proposto. Essa última fase deve seguir o que chamamos de “padrão ouro” de estudo clínico: os pacientes são divididos entre um grupo de tratamento (que recebem o produto sendo desenvolvido no esquema terapêutico proposto) e em um grupo controle (que recebem o placebo, um produto inerte, sem o princípio ativo); randomizados (aleatoriamente alocados nos grupos citados); duplo-cegos (de maneira que nem o paciente e nem o profissional de saúde saibam em que grupo o paciente se encontra); e multicêntricos (realizados em mais de um centro de pesquisa).
Um candidato em fase experimental só é considerado de fato eficaz contra determinada doença após obter resultados satisfatórios em todo esse extenso processo de desenvolvimento e avaliação. Este eventual medicamento terá a indicação somente para a doença para a qual foi testado. Qualquer indicação fora essa doença principal deverá ser embasada em novos estudos e caracterizará o que chamamos de “uso off-label”, a utilização do medicamento para uma doença ou condição que não segue as indicações homologadas para aquele fármaco.
Com resultados de fase III favoráveis, o produto poderá ser submetido ao registro junto à Anvisa. O início de sua comercialização marca também o início da fase IV do desenvolvimento: a farmacovigilância, que consiste no monitoramento do produto quanto ao possível aparecimento de eventos adversos inesperados e/ou complicações de longo prazo que não puderam ser avaliadas nas fases anteriores. Todas as fases desse desenvolvimento devem receber anuência prévia da Anvisa e seguir requisitos técnicos rigorosos para que sejam consideradas válidas.
Até o momento, no Brasil, um único medicamento derivado da Cannabis passou por todas as fases necessárias para o registro e é comercializado em farmácias. O Mevatyl (que recebe o nome de Sativex, em alguns países) da empresa inglesa GW Pharmaceuticals, composto por proporções semelhantes de THC e CBD e indicado em casos de espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, disponível desde 2017. Nos EUA, além do Sativex, a mesma empresa obteve o registro do medicamento comercializado sob o nome de Epidiolex, feito com CBD isolado e indicado ao tratamento de convulsões em pacientes com epilepsia refratária.
Os produtos derivados da Cannabis que chegarem às farmácias por meio da RDC 327/2019 não poderão receber a classificação de medicamento pois não terão passado por todas essas fases de estudo clínico. Por este motivo, recebem o nome genérico de “Produtos de Cannabis” de acordo com a Anvisa, até que concluam todos os ensaios e possam ser registrados no país como medicamentos fitoterápicos ou específicos, como no caso do Mevatyl.
Como os medicamentos derivados da Cannabis citados anteriormente, as vacinas CoronaVac e Covishield passaram por todas as etapas de desenvolvimento clínico; e em tempo recorde, o que gerou desconfiança quanto à sua segurança. É fundamental, no entanto, entendermos que além do conhecimento científico avançado, se comparado aos anos em que outras vacinas foram desenvolvidas, houve importantes esforços e colaborações internacionais entre vários institutos, universidades, empresas e governos pelo desenvolvimento dessas vacinas. Isso nos mostra que a ciência, quando devidamente incentivada, com mão de obra especializada e financiamento, tem um potencial gigantesco e célere de mudar o rumo do mundo. E detalhe, grande parte do investimento feito no desenvolvimento das vacinas foi público.
O potencial terapêutico da Cannabis é inegável, e a utilização de seus derivados já é responsável por mudar a vida de pacientes portadores das mais diversas condições. Embora ainda não tenhamos estudos robustos e completos como os que discutimos aqui para todas as doenças para as quais já são utilizados, evidências anedóticas, relatos de caso, prática clínica e estudos de menor robustez tem mostrado resultados muito promissores. No entanto, aos olhos da ciência e da medicina baseada em evidência, ainda carecemos desses ensaios clínicos mais robustos na grande maioria dos casos para obtermos protocolos, composições e doses mais assertivas e beneficiar ainda mais os pacientes. Padronização dos produtos, controle de qualidade, processos bem estabelecidos: tudo isso é necessário para um produto de grau farmacêutico, seguro, eficaz e de alta qualidade.
Imaginem, então, se as pesquisas com Cannabis fossem financiadas e apoiadas como foi o desenvolvimento das vacinas para a Covid-19! Teríamos, certamente em tempo recorde, a aprovação de medicamentos com potencial de mudar milhares de vidas. Teríamos dados preciosos que não deixariam margem para dúvidas mesmo de opositores ou proibicionistas, desde que não se rendessem ao negacionismo científico – um problema, infelizmente, ainda grande no país.
Essa é uma missão que deve ser abraçada por cientistas, médicos, empresas e toda a comunidade envolvida. Aqui na HempMeds, nosso desejo é contribuir com produção científica e informação de qualidade. Por este motivo, estamos com várias iniciativas relacionadas à pesquisa e ao incentivo desta área que merece e precisa de destaque. Nossos produtos já foram avaliados em alguns ensaios clínicos de menor robustez (em condições não relacionadas à Covid-19) com resultados muito satisfatórios e, em breve, traremos novidades nessa área.
Confie nos pesquisadores, confie nos profissionais sérios, confie nas Universidades, responsáveis pela maior parte da produção científica. Confie na ciência! Prepare suas veias, porque a picada está chegando; e abra sua cabeça, porque a medicina canabinoide não ficará para trás.
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Escrito por Gabriel Barbosa – Supervisor de P&D da HempMeds Brasil.